sexta-feira, 30 de maio de 2014

Oratórias

MagritteMais uma oratória, desta vez a de António Vieira e do seu sermão aos peixes
(os Antónios multiplicam-se, Santo Deus):

Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo.
Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar.
Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos.
Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego?
Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer.
Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.
LNT
[0.191/2014]

1 comentário:

Janita disse...

Anda muito místico, Luís...