segunda-feira, 9 de junho de 2014

O barbeiro [ VI ]

O BarbeiroE o tempo que não tinha forma de passar. Os clientes a acenar do lado de fora, a larica a apertar e as contas a ganharem tempo para serem liquidadas, enquanto esperava por cartas agradáveis com novas da filharada que havia partido de canudo no bolso para servir pizzas em Berlim.

Nisto, entra o carteiro no salão apregoando um jornal (daqueles ainda em papel) e a mostrar a primeira página cheia de gatafunhos rabiscados para fazer esquecer os males do Mundo.

-Luís, já viste, o tipo tinha razão. A maioria diz que está com ele, vem aqui no jornal. Perguntaram a umas centenas quem é que preferiam e, aqueles a quem perguntaram, responderam como eu responderia: - que estão com ele!

O Senhor Luís sem muita paciência para estas flores que de pouco mais serviam do que para enfeitar quem gosta de se ver enfeitado, atirou de chofre ao Daniel carteiro: - porreiro, pá! porreiro! Também queres um abraço, pá? Então vens com essa conversa da treta e esqueces que os mesmos responderam à questão “em quem votariam”, que irão fazer da vitória de Pirro um empate monumental? Tu que nunca votaste, nem nunca votarás nesses gajos de quem dizes cobras e lagartos, jubilas por ver César na mão de Brutus pronto a acertar-lhe na jugular.

- Oh Luís, que disposição! Tal como Napoleão te digo que: - divide ut regnes - e olha que não foi ele que inventou o dito e disse-o muito antes de bater com os costados em Santa Helena.

- Deixa lá essa cantilena, Daniel, e faz-te à vida que as pessoas estão ávidas de notícias que lhes toquem e tu deves ter a mala cheia delas.

Faz-te à vida e larga-me da mão que estou farto de tretas.
LNT
[0.223/2014]
Imagem: http://www.gutenberg.org/

Hasta siempre, comandante

Che GuevaraHá imagens históricas que nunca consigo abandonar. Uma delas é a de Che, o herói internacional que conseguiu reunir na sua aura, admiradores e fazedores de grafitties e de t-shirts para o imortalizar, bem como vendedores de boinas. Recordo-o deitado de barriga para o ar numa maca boliviana furado de cima a baixo por rajadas de raiva que simulavam uma morte em combate e escondiam uma execução cobarde desferida por um carrasco meio alcoolizado.

A verdade é que está imortalizado, embora morto, e que é o símbolo mundial da resistência, embora esquartejado e sem tumba onde se possam depor flores.

A verdade é que a resistência de que é símbolo ultrapassa os seus ideais que, se muitos que usam os seus adereços conhecessem nunca usariam, se transformaram em resistência sem ideologia, num resistir, por resistir, sem necessidade de resistir por qualquer coisa que não seja romântica.

Hasta siempre!
Hasta la vuelta!
Hasta la Victoria!
Siempre resistir!
Gracias a la vida!
LNT
[0.222/2014]

Já fui feliz aqui [ MCDXXI ]

Tripas Moda Porto
Tripas à moda do Porto - Por aí - Portugal
LNT
[0.221/2014]

Barbering Books [ VIII ]

Barbering BooksDai-me música, só música, não a vida.
Leva a hora e o amor
Com os papeis de cena e as máscaras, na vida
Do último actor.

Ah viver só em cenário e ficção
Não ter deveres nem gente
Sonhar até nem se sentir a emoção
Com que se sonha e se sente.

Porque só viver é que faz mal à vida,
Só amar, querer não existe
Para quem tira a máscara e, vê na sala despida,
Que só a ficção não é triste.
Fernando Pessoa
Poesia do Eu

LNT
[0.220/2014]

sábado, 7 de junho de 2014

Barbering Books [ VII ]

Barbering BooksAquilo de que me lembro (num presente que me parece também já passado) está cheio não só de estranhezas e improbabilidades mas igualmente de vazios, de hesitações e de imprecisões, pois se calhar não me recordo de factos mas da minha recordação deles. Pode por isso suceder que o que recordo não seja o que ouvi; ou que o tenha ouvido a outra pessoa, noutro lugar, noutras circunstâncias; ou mesmo que o tenha eu próprio sonhado ou imaginado.

Ouvi e li muitas outras coisas desde a minha distante primeira viagem ao estrangeiro, onde tudo (pelo menos aquilo de que agora me lembro) começa. Talvez, quem sabe?, nem nessa viagem tenha acontecido, ou eu a tenha lido, ou ouvido contar a alguém. A matéria da memória é indefinida e insegura e nela, como na matéria da vida (a vida é provavelmente apenas memória), se confundam acontecimentos e emoções, imagens e conjecturas, cuja origem nem sempre nos é dado com clareza reconhecer e cuja finalidade a maior parte das vezes nos escapa. E, no entanto, é tudo o que temos, memória.
Manuel António Pina
Os papeis de K.

LNT
[0.218/2014]

Já fui feliz aqui [ MCDXIX ]

Caldeirada
Caldeirada de peixe - Por aí - Portugal
LNT
[0.217/2014]

sexta-feira, 6 de junho de 2014

O barbeiro [ V ]

O BarbeiroEntre, entre, esteja à-vontade. O seu casaquinho pode ficar ali, no cabide da frente e depois faça a fineza de se sentar.

Venho arranjar as unhas - disse-lhe o cliente.

O barbeiro olhou-o de soslaio. Não estranhou os traços. Talvez algum cliente antigo que, por qualquer acaso ou circunstância, deixou as redondezas e voltou para saciar a saudade.

Senhor... - reticenciou o barbeiro na esperança de conseguir uma pista.

E o cliente sem lhe satisfazer o sibilo: - Quero que as unhas sejam aparadas pela Gisela e envernizadas pela Turquesa.

- Lamento, Senhor... mas já não tenho esteticistas nem manicuras no meu estabelecimento. Esses fantásticos tempos de massagens e acepipes já lá vão e agora nem unhas se arranjam aqui porque a minha arte não chega a tanto. Posso dar-lhe um acerto na nuca e um aparo nas patilhas?

- Na cara não toque, deixe as patilhas! Trate da nuca que depois hei-de fazer as unhas em lugar adequado. Preciso delas a brilhar para quando tiver de as mostrar.

O Sr. Luís fez o que tinha a fazer, recebeu o que lhe era devido, facturou o que a lei manda, acompanhou o cliente à porta porque lhe sobrava tempo e voltou a tentar o sibilo mas não conseguiu matar a curiosidade. A narrativa das unhas a brilhar e os traços da cara que não estranhou por mais que escavasse na memória deixou-o intrigado. Quem seria o gajo?

Encolheu os ombros e resignou-se.
LNT
[0.216/2014]
Imagem: http://www.gutenberg.org/

Barbering Books [ VI ]

Barbering BooksO povo que assaltou Lisboa na companhia do nosso primeiro rei não a devia ter olhado com olhos iguais aos daquele que um outro monarca, louco e megalómano, ali embarcou para o matadoiro de Alcácer-Quibir. E também os que arderam nas fogueiras do Santo Ofício não levaram dela, certamente, uma recordação semelhante às dos irmãos que partiam para a Índia e regressavam gloriosos.

Sim, seria preciso vê-la desbobinada, cada passo da sua via-sacra destacado, como nas capelas de um calvário, e articulado depois no drama total da Paixão. Mas, como isso é impossível, fica apenas a imagem global duma sedutora decepção feita de rendido culto à beleza e de obstinado apego à raíz. No fundo, uma trágica falta de sintonização entre a consciência do país e a capital, que o foi de direito na hora dos Descobrimentos e, desde que o sonho morreu, passou a sê-lo apenas do facto.

O Velho do Restelo da epopeia, o melhor símbolo até hoje concebido em Portugal de courelas e ovelhas, vive ainda na pele do homem que nos nossos dias desce da Estrela, do Marão e da Peneda, pernoita na Mouraria, e amanhece com um travo a carne cosmopolita e venal, a fado, a volúpia de maresia do Oriente. Esse português das berças tem da prostituição e da aventura um sentido particular e cauteloso.
Miguel Torga
Portugal

LNT
[0.215/2014]