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quinta-feira, 3 de abril de 2008

Botão Barbearia[0.308/2008]
Barbearias
Fernado Pessoa - Rui Perdigão
Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas.
A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.

Quando me sentei na cadeira, perguntei, por um acaso que lembra, ao rapaz barbeiro que me ia colocando no pescoço um linho frio e limpo, como ia o colega da cadeira da direita, mais velho e com espírito, que estava doente.

Perguntei-lhe sem que me pesasse a necessidade de perguntar: ocorreu-me a oportunidade pelo local e a lembrança.

«Morreu ontem», respondeu sem tom a voz que estava por detrás da toalha e de mim, e cujos dedos se erguiam da última inserção na nuca, entre mim e o colarinho.
Toda a minha boa disposição irracional morreu de repente, como o barbeiro eternamente ausente da cadeira ao lado.
Fez frio em tudo quanto penso.
Não disse nada.

Saudades!
Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida.
Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais - se deixo de vê-las entristeço;
e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida.

O velho sem interesse das polainas sujas, que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã?
O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente?
O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria?
O dono pálido da tabacaria?
O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida?
Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros.
Amanhã também eu - a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim - sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um «o que será dele?».

E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.
Fernando Pessoa (barbearias), edições Rolim
LNT
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