Barbearias
Entrei no barbeiro no modo do costume, com o prazer de me ser fácil entrar sem constrangimento nas casas conhecidas.
A minha sensibilidade do novo é angustiante: tenho calma só onde já tenho estado.
Quando me sentei na cadeira, perguntei, por um acaso que lembra, ao rapaz barbeiro que me ia colocando no pescoço um linho frio e limpo, como ia o colega da cadeira da direita, mais velho e com espírito, que estava doente.
Perguntei-lhe sem que me pesasse a necessidade de perguntar: ocorreu-me a oportunidade pelo local e a lembrança.
«Morreu ontem», respondeu sem tom a voz que estava por detrás da toalha e de mim, e cujos dedos se erguiam da última inserção na nuca, entre mim e o colarinho.
Toda a minha boa disposição irracional morreu de repente, como o barbeiro eternamente ausente da cadeira ao lado.
Fez frio em tudo quanto penso.
Não disse nada.
Saudades!
Tenho-as até do que me não foi nada, por uma angústia de fuga do tempo e uma doença do mistério da vida.
Caras que via habitualmente nas minhas ruas habituais - se deixo de vê-las entristeço;
e não me foram nada, a não ser o símbolo de toda a vida.
O velho sem interesse das polainas sujas, que cruzava frequentemente comigo às nove e meia da manhã?
O cauteleiro coxo que me maçava inutilmente?
O velhote redondo e corado do charuto à porta da tabacaria?
O dono pálido da tabacaria?
O que é feito de todos eles, que, porque os vi e os tornei a ver, foram parte da minha vida?
Amanhã também eu me sumirei da Rua da Prata, da Rua dos Douradores, da Rua dos Fanqueiros.
Amanhã também eu - a alma que sente e pensa, o universo que sou para mim - sim, amanhã eu também serei o que deixou de passar nestas ruas, o que outros vagamente evocarão com um «o que será dele?».
E tudo quanto faço, tudo quanto sinto, tudo quanto vivo, não será mais que um transeunte a menos na quotidianidade de ruas de uma cidade qualquer.
Fernando Pessoa (barbearias), edições Rolim
LNT
Rastos:
-> Vida da Coisas - Levantar a moral do senhor Luís
-> Vida das Coisas - Rui Perdigão
5 comentários:
Acredita que eu penso o mesmo ?
Fernando Pessoa sabe dizer o que eu penso, mas que não sei dizer (ou melhor escrever).
Mas penso.
Como Fernando Pessoa pensou.
E por isso escreveu.
Em primeiro lugar quero pedir desculpa por só agora agradecer a referência que fez ao meu blog e ao link, em 19.03.08!
:)
Gostei da sinopse do blog!
Mais uma vez obrigada!
Objectiva3
Cristina Garcia
É a vida Luis...é a vida...
Habitue-se!
Abraço
Não sei a quê me habituar, Carminda.
O texto é de Pessoa e a vida é assim mesmo. Aplica-se a todos nós, como já se aplicava quando o mestre o passou a letras.
Luis,
peço desculpa se entendi mal o seu estado de alma para escrever este texto do F.Pessoa.
Foram os links amigo, que me levaram esse entendimento...
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