Sempre a considerar a nossa distinta clientela aqui fica o interessantíssimo diálogo entre duas ilustres visitantes que ficou registado
na caixa de comentários e que salta para a primeira página porque é aqui que deve estar.
Não se traduz a parte francesa dado ser entendível em português corrente.
Agradecimentos a
Helena Araújo e a
Ana Cristina LeonardoAna Cristina Leonardo:
(...) O problema, pelo menos para mim, sempre foram outras 3 coisas:
1. Confirmar, pela conversa, que quem manda é a Alemanha e a Europa é uma fraude
2. O Gaspar andar a dizer que tudo vai bem no reino de Portugal e dos allgarves e depois, em privado, demonstrar que o que anda a dizer é uma aldrabice.
3. Confirmar que a crise europeia anda a ser tratada em função das eleições na Alemanha. (...)
Helena Araújo:
Ana Cristina, as coisas não são tão simples. Primeiro, a Europa é realmente uma fraude, mas a culpa não é só da Alemanha. Ainda não vi outros países a unirem-se com um projecto alternativo a este da Alemanha. Pode ser falta de informação minha, mas parece-me que a Alemanha está a ocupar um terreno deixado livre pelos outros. Aliás: parece-me que está a ser obrigada a tomar medidas e a fazer esta figura de mandona, porque mais ninguém sabe o que fazer nesta situação.
Agradeço – sinceramente! - que me diga que este comentário está errado, e porquê. Gostava mesmo de saber que esforços é que os outros países têm desenvolvido para salvar a ideia da Europa.
Em segundo lugar, isto não é uma mera questão de ganhar eleições. Se a Alemanha decidir aumentar a sua dívida pública para garantir o pagamento das dívidas de outros países, é preciso que os contribuintes alemães estejam de acordo. A dívida pública alemã já é demasiado alta, o próprio Estado alemão anda a poupar imenso a todos os níveis (adiamento de obras públicas importantes, contenção das despesas correntes, etc.) e as pessoas partem do princípio que os compromissos são para respeitar. Ou seja: se é para fazer novas dívidas imensas, também é preciso ver como é que vão ser pagas.
Claro que o povo alemão se pergunta porque é que tem de pagar as dívidas dos gregos que não se conseguem organizar para pôr as classes altas a pagar os impostos. E que dá imenso trabalho explicar que não é só isso, que há muito mais em causa.
Do mesmo modo, um alemão vê aquela auto-estrada de seis faixas entre Leiria e a Nazaré, bastante vazia, e pergunta-se se havia realmente necessidade. E o governo alemão tem de explicar às pessoas que isto não é bem assim, que não é só isto, e os jornalistas alemães têm de escrever artigos a corroborar que de facto os portugueses merecem e valem bem o esforço que os contribuintes alemães serão chamados a fazer.
Ana Cristina Leonardo:
Helena, as coisas nunca são simples. E quando se trata de capitais financeiros, meu deus, é como se entrássemos num acelerador de partículas! Já agora, aconselho vivamente o livro de Michael Lewis The Big Short, para que se perceba (ou, pelo menos, se tente perceber) o tipo de doidos a que estamos entregues. Voltando à Grécia, talvez as coisas sejam simples para quem tenha perdido o emprego ou/e a casa, e se veja tão encurralado que faça como a grega da fotografia que subiu para o parapeito do edifício do escritório de onde irá ser certamente despedida e fique lá em cima a olhar o mundo, a pensar se tem ou não tem coragem para se atirar no vazio.
A Europa é uma fraude. A Europa foi o sítio melhor do mundo para se viver no pós-guerra. Talvez tenha sido a coisa mais próxima da justiça em toda a história da humanidade. Mas o dinheiro, sabe, Helena, está a cagar-se para a humanidade. O dinheiro, ao contrário dos proletários do Marx, que foram desaparecendo, internacionalizou-se. Foram fazer dinheiro para a China, para a Índia, para onde era mais barato. E lixaram com ph esta merda toda. A nós, portugueses, pagaram-nos para abater barcos, deixar de cultivar e o resto, um foi para as auto-estradas cavaquistas, essas que agora estão desertas, outro para o bolso dos corruptos que andaram a fechar fábricas no norte e a comprar jaguares. Enquanto os corruptos deram dinheiro a ganhar, a Europa, essa puta (e pardon my french) não se importou com o que faziam. Mas quando acordaram para a vida... o dinheiro fora-se. Vão cobrá-lo a quem? Aos tipos com ordenado mínimo, aos velhos das pensões, aos funcionários públicos, à malta que ganha 1000 euros por mês e de repente passaram a ser vistos como milionários. Brincamos, não é? Os lucros dos bancos sobem, as grandes fortunas aumentam, mas a culpa é dos gregos. E a Alemanha no meio disto tudo. A Alemanha anda a pensar noutros carnavais. Nos países do Leste, no mercado chinês. E foi mantendo a corda (como fizeram os franceses) apertada até conseguir tirar de lá parte substancial do dinheiro (falo dos bancos, naturalmente). É um problema de contabilidade. Já sacámos o que podíamos, então agora que se lixem. Ninguém faz políticas daquelas a sério, porque, simplesmente, é impossível os gregos pagarem. E estou a deixar de lado, um pormenor sobre o qual também me interrogo: quem apostou no incumprimento grego vai ganhar quanto. Agora dir-me-á, sim, mas os gregos é que se enterraram a si próprios. Acredita mesmo nisso? Houve corrupção, houve má aplicação dos fundos, tudo isso. Mas quem é que andou a emprestar barato? Quem é que se esteve a borrifar para controlar contas? A grande Europa. Isto dos Estados é um pouco mais complexo do que a economia doméstica. E querer misturar moralidade com capitalismo é o mesmo que querer misturar duas substâncias insolúveis. Isto era um projecto europeu, pelo menos no papel. assim sendo, a Europa tinha obrigação de não ter deixado a coisa chegar a este ponto. O Banco Central teria que ter desvalorizado (emitido) moeda (como fizeram os EUA). Deixar a situação chegar a este ponto é a prova provada que nunca houve vontade real de o resolver. A solidariedade é boa para os pobres. E sim, a Grécia ainda está à espera que a Alemanha lhe pague a dívida da II Guerra. Quanto aos gregos, eu gosto de gregos. Nos campos de concentração, em que a coisa era bem simples, os judeus gregos foram dos mais corajosos. E aí era assim: um herói era um herói morto. Não me lixem com a contabilidade dos grandes financeiros. Isto para mim é um nojo. E vai assim o comentário, grande, caótico e sentido. Anacrónico, provavelmente.
Helena Araújo:
Ana Cristina, há aqui coisas muito simples em que, segundo me parece, estamos de acordo:
- a Europa é uma fraude
– a solução apontada pela Alemanha para resolver esta crise é um erro brutal, porque vai lançar toda a Europa numa recessão provavelmente comparável à grande depressão do fim dos anos 20; é também um erro brutal porque opta por proteger os interesses financeiros completamente desgovernados (já agora: ao abrigo de um enquadramento legal totalmente inadequado, que resulta da falta de entendimento entre os Estados) à custa das classes médias e mais pobres.
- O desaustinado sistema de especulação financeira está a conseguir destruir as economias, a destruir os princípios de solidariedade social que pareciam tão inabaláveis, e a atingir o próprio funcionamento das Democracias.
Onde já tenho algumas dúvidas:
- A "justiça europeia" dos últimos sessenta anos construiu-se por conta de excepcionais taxas de crescimento económico (que já não são possíveis) e de um forte sistema de redistribuição (que, na Alemanha, começou a falhar há alguns anos), mas também de uma série de erros: um endividamento progressivo e cada vez mais incomportável para pagar as conquistas sociais (há pelo menos vinte anos que ouço dizer que o "contrato de gerações" tem os dias contados, e que em algum momento não vai haver com que pagar as reformas, por exemplo), a exploração dos países do terceiro mundo, etc.
Tenho alguma dificuldade em dizer "justiça" quando falo sobre o bem-estar europeu, porque muito desse bem-estar é pago com o sofrimento de muitos não europeus e, devido ao progressivo endividamento, terá de ser pago também pelos nossos filhos e netos (no caso de se entender que as dívidas contraídas pelos governos são mesmo para ser pagas algum dia).
- Quando em Portugal me dizem que se trocaram as indústrias, a agricultura e as pescas por autoestradas desnecessárias, sinto uma enorme perplexidade: qual era a ideia dos políticos que assinaram esses acordos? E porque é que continuam a andar por aí impunemente, em vez de serem chamados à sua responsabilidade? Para além de não perceber que seja possível entregar as pescas (por exemplo) em troca de nada, não percebo essa insistência em dizer que a Europa é que nos enganou. Somos crianças de infantário a quem facilmente se rouba um chupa-chupa? É assim tão fácil enganar os portugueses?
- A Europa devia ter controlado o que se estava a passar em certos países, e devia ter posto travões bem antes? Isso chama-se ataque às soberanias nacionais. Não havia um quadro legal europeu que permitisse interferir nas políticas orçamentais dos governos e nos seus processos de endividamento nos mercados. Ou alguém está a imaginar Bruxelas a dizer ao Sócrates que estava proibido de ir pedir o próximo empréstimo de x milhões, porque Portugal já estava demasiado endividado? E enquanto durou o fartar vilanagem de países a pedir dinheiro emprestado com juros baixos, não porque os mercados acreditassem muito na capacidade de esse país pagar, mas simplesmente porque estavam na zona euro e os outros países do euro seriam com certeza solidários: algum dos governantes da Grécia, da Itália, da Espanha ou de Portugal se lembrou de ir à Europa dizer que era preciso acabar com este sistema, porque era demasiado arriscado? Não. Enquanto durou, foi uma festa; mas quando rebentou, os outros é que têm a culpa. Há milhentos exemplos de má gestão de fundos em Portugal. Todos nós fomos testemunhas de casos de esbanjamento, corrupção, incompetência com caríssimos custos. Enquanto assistíamos calados a isso, não nos perguntámos quem ia pagar as despesas? E agora dizemos que a culpa é da Europa, que não acordou mais cedo para o que se passava no nosso país?
- Quanto aos gregos: gosto muito dos judeus gregos, corajosos ou não, gosto menos dos gregos que ajudaram os alemães a mandar os judeus para os campos de concentração. É um povo como todos os outros: há de tudo. Por acaso também gosto dos alemães de Berlim que esconderam judeus até ao fim da guerra, apesar de o Himmler querer a cidade "limpa", e apesar do preço a pagar se fossem descobertos: a morte ou o campo de concentração, e a entrega dos filhos a famílias nazis, para serem reeducados.
Isto é tudo muito mais complicado do que cabe numa caixa de comentários. A única coisa que eu queria deixar claro é que me parece errado fazer da Merkel o monstro e o bode expiatório dos erros que todos nós cometemos, de uma ou outra maneira. Não foi a Merkel sozinha que nos trouxe para esta situação, e convinha que cada país olhasse para as suas próprias responsabilidades em vez de se armar em vítima. Repito: ainda não vi nenhum país (ou grupo de países) a apresentar à Europa uma proposta para resolver esta crise de outra maneira. O papel que a Alemanha está a ter neste momento pode ter muito de calculismo, egoísmo nacional e incompetência, mas os comentários tipo "o que Hitler não conseguiu, a Merkel está a conseguir" são absolutamente despropositados.
Um pequeno reparo: aquela referência à Merkel e ao Hitler foi um deslize no comentário anterior, porque a Ana Cristina Leonardo não estava a falar disso. Eu é que misturei as críticas da Ana Cristina com outras que tenho visto por aí. Mantenho a afirmação – pintar a Merkel de bigodinho é um disparate de todo o tamanho (e andam por aqui uns interessantes laivos de racismo) – mas isso é tema para outra conversa.
Dado serem possíveis mais desenvolvimentos propõe-se a consulta à caixa de comentários onde eles têm estado a ser registados.
LNT[0.120/2012]