segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Queixa das almas jovens censuradas

AngocheDão-nos um lírio e um canivete / e uma alma para ir à escola / mais um letreiro que promete / raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário / que tem a forma de uma cidade / mais um relógio e um calendário / onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim / para dar corda à nossa ausência. / Dão-nos um prémio de ser assim / sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu / para tirarmos o retrato / Dão-nos bilhetes para o céu / levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crânios ermos / com as cabeleiras das avós / para jamais nos parecermos / conosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história / da nossa historia sem enredo / e não nos soa na memória / outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados / que adormecemos no seu ombro / somos vazios despovoados / de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho / e um pacote de tabaco / dão-nos um pente e um espelho / pra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça / e uma cabeça presa à cintura / para que o corpo não pareça / a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro / com embutidos de diamante / para organizar já o enterro / do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal / um avião e um violino / mas não nos dão o animal / que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão / com carimbo no passaporte / por isso a nossa dimensão / não é a vida, nem é a morte
Natália Correia
LNT
[0.055/2010]

4 comentários:

besugo disse...

Lembro-me de escutar estas palavras, que parecem pedradas, ainda bastante rapazinho, com o meu padrinho (que tinha um daqueles gravadores de bobines). Eram cantadas pelo José Mário Branco, que conseguia fazer destas mesmas palavras um fraguedo. Penso que foi essa a primeira vez que escutei José Mário Branco e lembro-me como se fosse hoje: por essa altura, já vários rapazes, da família ou conhecidos, tinham embarcado para a Guerra; e eu, embora miúdo, senti um arrepio fundo ao pensar que, embora pudesse demorar ainda algum tempo, não haveria talvez maneira de aquilo deixar de vir a ser também comigo. Comigo já era, mas temia o dia em que me ofertassem o esquife feito de ferro - sinal macabro de que seria, então, mesmo comigo.

O Puma disse...

A nossa Natália

Maria disse...

Passaram tantos anos e, a poesia de Natália, continua actual.
Maria

lmdoliveira disse...

muito má recordação tenho eu do navio Angoche.