domingo, 20 de outubro de 2019

Memórias de coisas antigas [ II ]


Em Agosto de 1973, primavera marcelista, ao amparo do toldo da maralha na praia do Dragão Vermelho da Costa de Caparica (onde ainda não havia paredão nem pontões), espreguiçavam-se meninos maus de boas famílias e meninas boas de famílias más a ressacar a noitada do dia anterior. Entre outros, o Delmiro Andion e eu próprio.

Os altifalantes debitavam para o areal os apelos da cabine de som: “encontrou-se uma carteira que se entrega a quem comprovar pertencer-lhe” ou: “está aqui um menino perdido, de nome Marcelo, que será entregue aos pais devidamente documentados”, entrecortados com publicidade ao “OMO, lava mais branco”, com o hino da FNAT “Angola é Nossa” e interrompidos, às 15:00 horas, pela radionovela “Simplesmente Maria” que fazia a praia ficar em suspenso e nos proporcionava silêncio para uma sesta reparadora.

O toldo ao lado era o dos marrões que não tinham conseguido o 14 e que levavam para a praia os calhamaços para o Exame de Aptidão à Universidade e eram vigiados nos estudos por um encarregado de educação escondido atrás de “o Século” que deixava na cadeira de praia quando ia, com os seus marrões, almoçar a casa.
Quando me dava na bolha aproveitava a ausência e folheava o jornal.

Tanto o Delmiro como eu tínhamos ido às sortes na Avenida de Berna e as inspecções declararam-nos apurados “para todo o serviço”. Andávamos naquela vontade de continuar os estudos para depois, quando já estivéssemos fartos de os não ter deixado para antes.

Os adiamentos ao feijão-verde estavam postos de lado.

Nesse dia chamou-me a atenção um anúncio da FAP impresso na última página do matutino.
Já tinha dois irmãos na guerra em Moçambique, ambos pilotos – um de T6 e o outro de Alouette III - , achava que o hino que soava nos altifalantes era irritante e estúpido porque Angola não era nossa mas sim deles, dos que eram de lá oriundos e, quando muito, também dos outros que para lá foram.

Não me apetecia pegar numa canhota para andar no mato dos outros à espera que uma mina me mandasse pelos ares.

E, ares por ares, antes os ares por fora de um avião. Abanei o Delmiro, mostrei-lhe o anúncio e dois minutos depois estava decidido passar pela Andrade Corvo (e não Corco, como dizia no anúncio – até nisso a tropa era tropa) para ver o que dava.

E deu.

Exames físicos e psicotécnicos feitos, abalámos para a Granja do Marquês onde aprendemos a voar.

Curiosamente, não tenho qualquer foto dos dois fardados a não ser uma de conjunto na recruta depois de uma carecada e, curiosamente também, dali seguimos caminhos diferentes.


Eu, o da Ilha da Morte Lenta, entretanto morrida, e ele o de Tancos, onde quase meio século depois andaram a fanar uns mamarrachos que sobraram dessa época e que tem servido para a politiquice em 2019.

Também publicado no Penduras

LNT
#BarbeariaSrLuis
[0.025/2019]

2 comentários:

Janita disse...

E assim, se foi a carreira de jornalista.
Mas fez bem. Foi feliz a voar e, hoje, tem muitas recordações para contar.
Estou a gostar muito de ler e espero a continuação.

Um abraço. :)

Luís Novaes Tito disse...

São só apontamentos. Às vezes apetece, para desanuviar e fazer trabalhar parte do cérebro.
Abraço