Sou dos que pensam que Sophia tem de ser ensino obrigatório e que tem o seu lugar perpétuo no Panteão Nacional porque um dia um dos muitos analfabetos, que por ser doutor em alguma coisa, pode decidir que o seu ensino deixe de ser obrigatório e assim nunca conseguirá inviabilizar que a memória nacional deixe de recordar Sophia – sempre eterna - e que, quando esse doutor voltar a ser pó, ela possa retornar à escola e ao imaginário dos nossos filhos e netos.
VI - A floresta abandonada
Estava tudo muito quieto e muito calado. A floresta parecia despovoada. Não se ouviam pássaros. Não havia nenhuma flor.
Mas havia muitos cogumelos venenosos. E Oriana chamou:
- Pássaros, esquilos, veados, corças, coelhos, lebres!
Então ouviu um barulho no chão e, pequenina e preta, a víbora apareceu.
- Bom dia - disse a víbora.
- Bom dia, víbora - respondeu Oriana. - Onde estão os outros animais?
- Foram-se todos embora para os montes. Como a fada Oriana os abandonou e não tinham ninguém para os proteger dos tiros dos caçadores, eles tiveram de fugir para muito longe. Só ficaram os ratos, as víboras, as formigas, os mosquitos e as aranhas.
- Ah! - disse Oriana, corando de vergonha. E perguntou:
- Sabes quem eu sou?
- Não - disse a víbora. - Vejo só que és uma menina muito bonita.
- Não sou uma menina bonita. Sou uma fada, sou a fada Oriana.
- Ah! Mas que esquisito! Onde é que estão as tuas asas? Nunca ninguém viu uma fada sem asas.
- Agora não tenho asas, mas daqui a dias vou voltar a tê-las. É uma história que não te posso contar.
- Eu, como ando sempre metido debaixo da terra, nunca te tinha visto, mas já tinha ouvido falar de ti.
- Sim? O que te disseram de mim?
- Contaram-me que dantes eras muito boa e tomavas conta da floresta, mas um dia abandonaste os teus amigos todos porque te apaixonaste por um peixe.
- Isso é mentira - disse Oriana, furiosa. - Nunca me apaixonei pelo peixe. Que história tão estúpida!
- Pois fica sabendo que é isso o que se diz. Até contam que tu passavas horas e horas debruçada sobre o rio a fazer penteados e a enfeitar-te com flores só para o peixe te dizer que estavas muito bonita.
- Mas eu nunca me apaixonei pelo peixe. Eu passava horas ao pé do rio porque gostava de me ver no rio.
- Talvez seja como dizes. Mas o peixe contou aos outros peixes, que contaram aos pássaros, que contaram aos coelhos, que contaram às víboras, que tu estavas louca de amor por ele e que só pensavas em te enfeitares para que ele te achasse bonita. Oriana estava indignada. Sentia-se ridícula. Olhou para a víbora e disse:
- Isso é uma mentira muito estúpida. Uma fada não se pode apaixonar por um peixe. Essa história é má-língua. É a célebre má-língua das víboras.
E, virando as costas, Oriana seguiu o seu caminho, mas enquanto se afastava ouviu o riso mau e sibilante da víbora:
- sssssssssss.
Ao fim de muito andar chegou à casa do moleiro. A porta estava aberta. Lá dentro estava tudo na maior desordem: as gavetas e os armários abertos e vazios, o chão e os móveis cobertos de poeira, e havia por todos os lados coisas partidas. A casa parecia ter sido abandonada há muito tempo. O lume estava apagado, os quartos cheios de teias de aranha. Oriana pegou numa vassoura e num trapo e começou a varrer e a limpar a casa. Então ouviu um ruído e uma voz que a chamou:
- Oriana! Era um rato.
- Oriana, não vale a pena arrumares a casa. Já não vive aqui ninguém senão eu. O moleiro, a moleira e os seus filhos foram viver para a cidade.
- Ah! Mas porquê? - perguntou Oriana.
- Um dia desapareceu um dos filhos mais novos, aquele que tem caracóis pretos e que tem quatro anos. O moleiro e a moleira procuraram-no durante nove dias pela floresta toda sem o encontrar, e ao fim de nove dias o moleiro disse: "O nosso filho perdeu-se na floresta, ou foi comido pelos lobos, ou caiu ao rio, que o levou afogado para longe. Não vale a pena procurá-lo mais. Vamo-nos embora da floresta antes que torne a acontecer outro desastre. - Há muito tempo que eu sentia que ia acontecer uma coisa má - disse a moleira. - ultimamente tudo me corria torto. Quando eu chegava a casa encontrava tudo desarrumado. Os meus filhos estavam sempre a cair ao rio e voltavam sempre para casa sujos, rotos e cheios de feridas. Vamos depressa embora da floresta." E depois desta conversa o moleiro e a mulher fizeram as malas e as trouxas, puseram tudo numa carroça e foram com os filhos para a cidade. Por isso não vale a pena arrumares a casa.
- Foi tudo por minha culpa - suspirou Oriana -, fui eu que os abandonei. Os filhos do moleiro caíam ao rio e voltavam para casa sujos, rotos e feridos porque eu não tomava conta deles. Até que um se perdeu. Ai como é que eu hei-de desfazer o mal que fiz? E dizendo isto Oriana pôs-se a chorar ao pé do lume apagado.
- É uma grande tristeza - disse o rato. - E foi realmente tua a culpa.
Oriana pegou na vassoura, dizendo:
- Apesar de tudo, vou acabar de arrumar e limpar a casa.
Quando chegou ao fim das limpezas, a fada despediu-se do rato e foi outra vez pela floresta fora. Pelo caminho havia pedras que lhe magoavam os pés e tojos e matos que a picavam. Quando ela tinha asas, voava por cima dos caminhos maus e só pousava no chão os seus pés quando o chão estava coberto de musgo, de relva macia ou de areia fina.
"Que difícil que é a vida dos homens", pensou ela. "Eles não têm asas para voar por cima das coisas más." Andando, Oriana chegou à cabana do lenhador. Também ali o lume estava apagado, o chão coberto de pó. A cama, a mesa e os bancos tinham desaparecido.
Então Oriana ajoelhou-se ao pé do lume apagado e chorou. E ouviu uma voz dizer:
- Oriana, que é feito das tuas asas?
Era uma formiga. - A Rainha das Fadas tirou-me as minhas asas porque eu faltei à promessa que lhe fiz.
- Foi um castigo justo porque tu esqueceste e abandonaste os teus amigos. Vê o que aconteceu nesta cabana. O lenhador e a mulher eram muito pobres. Mas todas as manhãs tu aqui entravas com três pedrinhas brancas. E transformavas as pedras em dinheiro, em roupa, em pão. Até que houve uma manhã em que tu não vieste. E dai em diante passou a haver fome, frio e miséria nesta cabana. E um dia o lenhador disse à mulher: "Não podemos continuar a viver com tanta miséria. Vamos para a cidade procurar trabalho."
E fizeram uma trouxa com os seus trapos e pegaram nos móveis às costas e com o filho pela mão partiram para a cidade. Iam tristes e choraram muito quando se despediram desta cabana, onde eram felizes, no tempo em que tu todos os dias os visitavas com três pedras brancas.
- Ai, formiga - disse Oriana, soluçando -, como é que eu hei-de desfazer todo o mal que fiz? Só agora é que eu compreendo como a minha promessa era importante. Só agora é que eu compreendo como a floresta precisa de mim.
- Não sei que conselho te hei-de dar - respondeu a formiga. - Mas já que estás arrependida de nos teres abandonado, já que queres voltar a ajudar os homens, os animais e as plantas, faz-me um favor.
- O que é? - perguntou Oriana, limpando as lágrimas.
- Pega numa pedra branca e transforma-a numa pedra de açúcar.
- Ai, formiga! - disse Oriana. - Já não tenho varinha de condão. Não posso fazer o que me pedes. Já não sirvo nem para ajudar uma formiga.
- Então se não me podes ajudar, adeus, Oriana. Tenho muito que fazer.
E, com um ar muito atarefado, a formiga foi-se embora.
Oriana suspirou, levantou-se e saiu da cabana. Cá fora já anoitecia. A fada pôs-se a caminho da torre do Poeta. A torre ficava longe e o caminho era selvagem, cheio de picos e de pedras. Oriana caminhava cortando a cada instante os seus pés. Não se ouvia cantar nenhum pássaro, não se via correr nenhum coelho, não se via aparecer nenhum veado com o seu ar majestoso e os olhos húmidos de doçura. Em toda a floresta pairava o silêncio, o abandono, a solidão. Quando Oriana chegou à torre, era já noite fechada. E ela levava os pés em sangue e o coração pesado. A porta da torre estava aberta. Oriana entrou, subiu as escadas, pensando:
- O Poeta vai-me consolar, vai-me dizer o que hei-de fazer. Ele vai encostar a minha cabeça ao seu ombro para que eu possa chorar, chorar até que a minha solidão se desfaça.
Oriana abriu a porta do quarto do Poeta. E viu que o quarto estava vazio. Os papéis que dantes cobriam os móveis e o chão tinham desaparecido. Mas a lareira apagada estava cheia de cinza de papéis queimados. E o vento, que entrava pela janela, espalhava as cinzas. Estava tudo coberto de cinza. Oriana atravessou o quarto e os seus pés feridos deixaram pegadas vermelhas de sangue sobre a cinza macia e branca. E ela ajoelhou-se em frente dos papéis queimados e, com a cara coberta de lágrimas, disse:
- Vim à procura do meu amigo e não o encontrei. Oh, como é que poderei desfazer o mal que fiz! Eu quebrei a felicidade dos homens, dos animais e das coisas. Eu esqueci a minha palavra e abandonei a minha promessa. Agora só encontro lumes apagados, casas vazias e cinza.
Então uma aranha desceu do tecto, agarrada ao seu fio brilhante, e perguntou:
- És a fada Oriana?
- Sei que sou Oriana, mas já não sei se sou fada. Faltei à minha promessa e a Rainha das Fadas castigou-me: o vento levou as minhas asas e a minha varinha de condão transformou-se em poeira.
-É um castigo justo - disse a aranha -, porque tu abandonaste os teus amigos. Ouve o que aconteceu nesta casa: uma noite tu não vieste. E no dia seguinte, mal caiu a noite, o Poeta encostou-se à janela à tua espera. E quando uma folha mexia, quando um ramo seco estalava ou quando a brisa fazia dançar as ervas, ele dizia: "É Oriana." Mas não eras tu. Tu nunca mais voltaste. E ele esperou noites e noites sem fim. Sem ler, sem escrever, sem fazer nada. Passeava pelo quarto e falava sozinho. Até que uma noite, quando cantou o primeiro galo da madrugada, ele disse: "Oriana mentiu. Ela tinha-me dito: Nunca, nunca te hei-de abandonar. Mas eu tenho esperado, esperado, esperado. As noites têm passado devagar, uma por uma. Oriana já não aparece. O mundo está desencantado. Quero ir para a cidade e quero tornar-me igual aos outros homens. Quero tornar-me igual aos homens que não acreditam em encantos e que não escrevem versos. Vou queimar todos os meus livros e papéis." E depois de ter dito isto fez um grande fogo na lareira com os livros e papéis onde estavam escritos os seus versos. Ficou sentado a ver arder o lume e o reflexo da chama dançava na sua cara pálida e triste. E quando tudo se desfez em cinza, ele levantou-se e partiu para a cidade. E eu vi-o desaparecer na luz fria da madrugada.
- Foi minha a culpa - disse Oriana. - Como é que eu agora poderei fazer renascer os seus versos da cinza? Como é que eu hei-de fazer que a alegria e a amizade do meu amigo renasçam desta cinza? Ai, como o peixe me iludiu e me enganou com os seus elogios! Eu quero desfazer o mal que fiz. Irei à cidade buscar os meus amigos homens; irei aos montes buscar os meus amigos animais.
E, levantando-se do chão, Oriana despediu-se da aranha e partiu para a cidade. Atravessou outra vez a floresta, ferindo os seus pés nas pedras e rasgando-se nos tojos. Passou pelo caminho cheio de abismos e, quando era meio-dia, chegou à cidade.
A fada OrianaLNT
Sophia de Mello Breyner Andresen
[0.277/2014]
1 comentário:
Sou uma pessoa que se deixa comover com manifestações e opiniões quando me tocam fundo e sei serem ditadas pelo coração!
Foi o caso desta sua homenagem à nossa grande escritora e poetisa, Sophia.
Concordo, inteiramente, com a sua introdução, Luís!
Leitura obrigatória e lugar no Panteão Nacional, mas se tivesse de optar, fá-lo-ia pela primeira opção.
Um abraço.
Janita
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