Antero de Quental
LNT
[0.221/2012]
A miúda que acompanhava a mãe ao emprego naquele dia de carnaval em que os filhos não tinham aulas mas que, porque parecia bem lá fora, o governo tinha mandado os pais trabalhar, espantou-se com o êxodo que contrariava a entrada às oito e trinta da manhã e perguntou-lhe:
- Porque é que, no seu emprego, os do "turno da noite" são pretos?
A mãe incomodada com a constatação conseguiu dar a volta:
- Não é por serem pretos, filha, é porque estas senhoras não têm estudos. Sabes que há uns anos atrás os do "turno da noite" em França e na Alemanha eram quase todos portugueses brancos?
A miúda ficou em silêncio até o elevador abrir as portas no décimo quarto piso. Já no átrio, quase a seguir viagem para cima, ouvi a miúda perguntar à mãe:
- Porque é que a mãe, que já tem os estudos, vem trabalhar hoje se eu, que estou ainda a estudar, não tenho aulas?
LNT
[0.220/2012]
Manuel Alegre deu o dito por não ditoLNT
quando escreveu "nada está escrito"
(e eu repito)
nele, o poema é o som e o sentido
de um problema vivido
(e eu não duvido)
voz que afirma ou nega à tona e no fundo,
joga à cabra-cega e desvenda o mundo
(e eu o secundo)
voz que entrelaçou o feio e o bonito,
o mais chão, o voo, o não dito e o dito
(e eu acredito).
Olho para o contador, que nesta casa conta calmamente e sem batotas nem graxas, e apercebo-me que estão (quase) a só faltar 500.000 para que se atinja um milhão de clientes. É espantoso para quem abriu o estabelecimento há quatro anos e picos e só tem uma tesoura para desbastar tanta trunfa e topete.
Lançando o barro à parede, espero que apareça um patrocínio alemão para que o cliente 500.000, caso se identifique e comprove ser o bafejado, receba uma barra de ouro achocolatado com a chancela de Merkel.
Quanto aos restantes 499.999 que por aqui passaram, ficam beijos e abraços.
LNT
[0.214/2012]
Balada dos AflitosManuel Alegre apresenta "Nada está escrito", o seu mais recente livro de poesia.
Irmãos humanos tão desamparados
a luz que nos guiava já não guia
somos pessoas - dizeis - e não mercados
este por certo não é tempo de poesia
gostaria de vos dar outros recados
com pão e vinho e menos mais valia.
Irmãos meus que passais um mau bocado
e não tendes sequer a fantasia
de sonhar outro tempo e outro lado
como António digo adeus a Alexandria
desconcerto do mundo tão mudado
tão diferente daquilo que se queria.
Talvez Deus esteja a ser crucificado
neste reino onde tudo se avalia
irmãos meus sem valor acrescentado
rogai por nós Senhora da Agonia
irmãos meus a quem tudo é recusado
talvez o poema traga um novo dia.
Rogai por nós Senhora dos Aflitos
em cada dia em terra naufragados
mão invisível nos tem aqui proscritos
em nós mesmos perdidos e cercados
venham por nós os versos nunca escritos
irmãos humanos que não sois mercados.
Manuel Alegre