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segunda-feira, 30 de junho de 2014

Barbering Books [ XX ]

Barbering Booksque poder de ensino o destas coisas quando em idioma:
um copo de água agreste plenamente na mesa, só em linguagem o copo me inebria
– placa de gelo em que lóbulos do cérebro? –
e exalta-me a transparência, porque fora, sob administração geral:
ciência, literatura, economia, gramática,
nada, nenhum copo, nenhuma água na mesa,
me fazem sangrar a ferida essencial, ou mover-me às cegas e às avessas até ao último reduto;
só antes, por trás, depois,
à frente, eu sinto que a membrana de vidro, reservando uma pouca
de água miraculadamente do caos dos dicionários,
me despedaça como primeira palavra,
não apenas os dedos, mas dedos e memória, devotação de vida;
a lição do nome que não tem Deus, e de que o nosso nome diminuto se aproxima;
basta aquela água delgada enquanto algures ceifam na terra, edificam;
água colhida no verbo copo ou em Deus advérbio de modo,
e há um nó interno requeimado, um nó semântico, e um calafrio trespassa a bic preta,
e em nativo escrevo a música de ouvido,
e o ar que está por cima enche todo o caderno,
e equilibram-se o copo sobre a toalha, transparência, plano de água,
e dedos e papel e script e trémula superfície da memória, tudo passado a multíplice e ardente
Herberto Helder
Faca não corta o fogo

LNT
[0.270/2014]

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Barbering Books [ XIX ]

Barbering BooksPorque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
Sophia de Mello Breyner Andersen
Porque - Mar Novo

LNT
[0.267/2014]

terça-feira, 24 de junho de 2014

Barbering Books [ XVIII ]

Barbering BooksO homem abriu o envelope do Manuel e retirou de lá o passaporte falsificado e três camisas de vénus. Colocando estas à esquerda do copo, pensou: “Se o gajo tivesse feito trabalho duvidoso não se punha a gozar”. Guardou o passaporte no bolso interior direito do casaco. E nesse instante viu que um vulto se detinha em frente dele. Levantou a vista e deu com ela nas olheiras do Henrique.

“Tivarich Tchaikowsky”, disse-lhe o homem. “Sente-se. O que toma?” Continuava contente. O Henrique sentou-se, com os olhos ferrados nas camisas de vénus.

“Não tomo nada”, disse o Henrique. “Você arranjou abrigo?”

Uma grande voz gritou perto da mesa deles:

“Ó patrão, não há direito que você sirva melhor a clientela bem arreada. Olha os tremoços que ele dá a quem veste fino”. Era um guarda-fios enorme, a suar em bica. Estacara à porta da Rua da Escola Politécnica e apontava as camisas de vénus a toda a tasca.

“É servido?”, perguntou o homem pegando num desses objectos.

“Não cabe nos postes”, disse o guarda-fios. “E a patroa trabalha sem rede. Bom proveito”.

“Por que raio é que você escolheu este sítio?” perguntou o Henrique. O homem guardou os preservativos no bolso exterior esquerdo do casaco coçado.

“Por causa dos lustres”, explicou, apontando os seres alados empunhando candelabros de três lâmpadas, um de cada lado da porta com bandeiras de vidro verde. “Esta é a única tasca de Lisboa que tem cúpidas. Pensei que isso talvez nos desse sorte”.

Nuno Bragança
Directa

LNT
[0.259/2014]

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Barbering Books [ XVII ]

Barbering BooksMostrava-lhe as fotos na escrivaninha, seu trisavô com os reis da Bélgica, seu tetravô andando de costas em Londres, mas ele não queria saber de velharias.

Acompanhava-me aos sebos por benevolência, mas ficava parado do lado de fora com as mãos nos bolsos. Nem buço o moleque tinha, quando notei que se dedicava a espiar mulheres na avenida. E me arrepiei porque, de relance, num mero meneio de cabeça ele encarnou meu pai. Olhava as mulheres tal e qual meu pai, não de modo dissimulado, nem lascivo, muito menos suplicante, mas com solicitude, como quem atendesse a um chamado. Por isso as mulheres lhe eram gratas, e a seu tempo começaram a procurá-lo em casa, foi de tanto dormir no divã da sala que Maria Eulália ficou corcunda.

Ao som de sambas, rumbas, rock and roll, o Eulálio se entretinha no quarto com empregadinhas do bairro, caixas de supermercado, namorou até uma oriental, garçonete num sushi bar. Trazia também colegiais, um dia o vi entrar com uma menina muito branquinha, cheirosa, um andar gracioso.

Dessa vez colei o ouvido num copo contra a minha parede, curioso dos gemidos dela, queria saber que melodia tinham. Por baixo de uma batucada distingui sua cantilena triste, aguda, que subitamente deu lugar a gritos guturais, fode eu, negão!, enraba eu, negão!, e não sou homem que se melindre à toa. Mas assim que cruzei com ela, me vi compelido a lhe dizer, o negão aí é descendente de dom Eulálio Penalva d'Assumpção, conselheiro do marquês de Pombal.
Chico Buarque
Leite derramado

LNT
[0.255/2014]

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Barbering Books [ XVI ]

Barbering BooksÓ minha terra na planície rasa,
Branca de Sol e cal e de luar,
Minha terra que nunca viste o mar,
Onde tenho o meu pão e a minha casa.

Minha terra de tardes sem uma asa,
Sem um bater de folhas... a dormitar
Meu anel de rubis a flamejar,
Minha terra moirisca a arder em brasa!

Minha terra onde meu irmão nasceu
aonde a minha Mãe que eu tive e que morreu
Foi moça e loira, amou e foi amada!

Truz... truz... truz - Eu não tenho onde me acoite,
Sou um pobre de longe, é quase noite,
Terra, quero dormir, dá-me pousada! ...
Florbela Espanca
Sonetos

LNT
[0.252/2014]

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Barbering Books [ XV ]

Barbering BooksOra a verdadeira palavra do homem é a palavra escrita, pois só ella é immortal. Mas enquanto o ensino da palavra falada é o encanto das mães e filhos, o ensino da palavra escrita é o tormento de mestres e discipulos. Extranha diversidade em coisas tão irmãs!

Deus na sua providencia não o podia determinar assim. Ha-de haver meio facillimo, grato, universalmente acessivel, de espalhar essa arte, ou antes faculdade, sem a qual o homem não passa de um selvagem.

Este meio ou esse methodo encantador pelo qual as mães ensinam a falar, que é falando, ensinando-nos palavras vivas, que entreteem o espirito, e não letras e syllabas mortas, como fazem os mestres. Pois apressemo-nos tambem nós a ensinar palavras; e acharemos a mesma amenidade.
João de Deus
Cartilha maternal

LNT
[0.247/2014]

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Barbering Books [ XIV ]

Barbering BooksNormalizada a situação, com a posse do VII Governo Constitucional, presidido por Francisco Pinto Balsemão, compreendi que Balsemão e eu eramos aliados objectivos, sobretudo no que tocava ao projecto de revisão constitucional, que acabou com o Conselho da Revolução e, portanto, com a tutela militar sobre o poder civil, legitimado pelo voto popular.

A facção eanista dentro do PS (Zenha, Guterres, Sampaio, Arnaut, António Reis, Constâncio, Fernando Vale, Candal e Filipe Madeira, além, curiosamente dos meus velhos amigos Ramos da Costa e José Magalhães Godinho) entrou em ruptura comigo. Alguns por pouco tempo. Contudo, talvez por razões tácticas, não queriam destituir-me de secretário-geral. Só pretendiam esvaziar as minhas funções de poderes efectivos. Como se eu pudesse aceitar tal coisa. Tinham aliás uma maioria quase absoluta no antigo secretariado (que eu escolhera e fiz votar) e, numa proporção menor, no Grupo Parlamentar. O Congresso do PS estava marcado para os dias 8, 9 e 10 de Maio de 1981...
Mário Soares
Um político assume-se

LNT
[0.243/2014]

terça-feira, 17 de junho de 2014

Barbering Books [ XIII ]

Barbering Books- Não está triste, pois não?
e eu - Que ideia, Orquídea - com ganas de dizer-lhe que basta a companhia dela para me sentir melhor e não digo por vergonha, por acanhamento, por ser casado, talvez, e a fidelidade, e essas lérias, escuto os brincos a tilintarem ao meu lado enquanto abro o computador e apetece-me gritar
- Estou alegre - gritar muito alto
- Estou alegre - convidá-la para uma bica a seguir ao emprego, os dois numa mesinha de canto, com o meu joelho quase a tocar o seu, com o meu joelho a tocar o seu, com os meus dois joelhos a tocarem os seus, pegar nos pacotes de açúcar
- Muito ou pouco? - sorrir ao seu sorriso
- Muito - com os meus dois joelhos apertando os dela e, se a minha mulher, já agora
- Estás a pensar em quê?
- Na Orquídea - no tom mais natural deste mundo
- Estou a pensar na Orquídea
- Que história é essa da Orquídea? - a Orquídea e eu, palma com palma, a compararmos o tamanho das mãos e a divertirmo-nos com a diferença, a Orquídea e eu, felizes, de sininhos a tilintarem e oxalá me toque, oxalá me beije, oxalá me acaricie um ombro na pensão na rua abaixo do emprego, a compararmos o tamanho das cicatrizes das apendicites, a dela pequenina, bonita e eu, a descer Orquídea abaixo perguntando num murmúrio
- Importa-se que a beije aí?
António Lobo Antunes
Visão – 2014.06.12

LNT
[0.240/2014]

segunda-feira, 16 de junho de 2014

Barbering Books [ XII ]

Barbering BooksPromover o princípio da gestão da qualidade ”focalização no cliente”, através do envolvimento da gestão de topo em assegurar que a organização define os requisitos do cliente e garante que a organização vai ao seu encontro com vista a aumentar a satisfação deste.

Interpretação

Esta secção assenta no princípio de gestão da “focalização no cliente”, que estabelece que “as organizações dependem dos seus clientes e, consequentemente, convém que compreendam as suas necessidades, actuais e futuras, satisfaçam os seus requisitos e se esforcem por exceder as suas expectactivas”.

A gestão de topo tem a responsabilidade máxima por assegurar que a organização compreende as necessidades e expectativas dos seus clientes e os requisitos estatutários e regulamentos aplicáveis aos seus produtos. Estes devem ser usados como entradas para a organização definir requisitos internos para os seus produtos e o SGQ deve ser capaz de ir ao encontro desses requisitos de uma forma consistente.
APCER
Guia interpretativo NP EN ISO 9001:2008

LNT
[0.236/2014]

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Barbering Books [ XI ]

Barbering Books«Nem lei nem lei, nem paz nem guerra», recitava o juiz. E a terminar, já com soluços na voz:
«Ó Portugal, hoje és nevoeiro…
É a Hora».

Fez uma pausa, voltou-se, como sempre, para o Marquês e disse: Eu sou um sebastianista, sou um sebastianista e não tenho rei, mas é a Hora, ó meus amigos, é a Hora de rasgar o nevoeiro e de voltar a ter um rei.

E já fora de si, saltou para cima da cadeira e começou a gritar; Real, real, viva a Monarquia, viva El-Rei de Portugal.

Gonçalo Pena não se conteve. Levantou-se, fez uma vénia ao Marquês, ergeu o copo e replicou: Talvez eu seja um republicano sem República, por acaso, disse, olhando o copo, até sou um bebedor com pouco vinho, mas há uma coisa que vos garanto, se alguém me dá um viva à Monarquia, eu tenho de gritar, com vossa licença, viva a República.

E gritou mesmo. No que foi acompanhado pelo Dr. Felismino que, para grande admiração minha, até se levantou, ele que era sempre tão calado e tão discreto.

O juiz, que apesar da solenidade do cargo tinha fama de frequentemente substituir a sentença pela porrada, atirou-se a Gonçalo Pena. Que não se ficou. Só o meu Pai os conseguiu separar, não sem levar de um e de outro, o que o irritou, a ponto de dizer: Mau, se é assim, também dou.
Manuel Alegre
Alma

LNT
[0.232/2014]

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Barbering Books [ X ]

Barbering Books- O melhor é virem para a sala – disse a mulher.

Aí estavam três homens e cinco mulheres sentados. Não era preciso ser feiticeiro para adivinhar de que casa se tratava. Sara fez esforço para calar um gesto de recuo. Preconceitos pequeno-burgueses, são mulheres como as outras. E ajudaram-nos. Sorriu para a que lhes tinha aberto a porta, de meia idade e com problemas nos dentes.
- Obrigada.

- Se os chuis aparecerem, metam-se num quarto. Sem cerimónias. A esta hora estão todos vazios, o negócio começa mais tarde. Estes senhores também fugiram da manifestação.

Os homens tinham ficado encabulados ao verem entrar Sara, que decididamente não tinha estilo de puta. Mas agora riram todos, solidários. Um deles, o mais velho e com vestuário de operário, disse:
- Esta casa eu não conhecia. Mas como foram tão porreiras, vou passar a frequentá-la. Se a minha patroa deixar…

Os outros riram. A mulher que lhes tinha aberto a porta sentou-se ao lado dele. Segurou-lhe a mão.
- Tens de pedir autorização à tua patroa, queridinho?
- Ela é que guarda o dinheiro. E é muito semítica…
Pepetela
A geração da utopia

LNT
[0.227/2014]

terça-feira, 10 de junho de 2014

Barbering Books [ IX ]

Barbering Books
Ao entrar em casa da minha irmã, vejo o Simão sentado, à mesa da cozinha, a fazer os trabalhos de casa. Pergunto:

- Então, como é que vai essa vida?

E, ele, desanimado:

- A vida vai bem. O que dá cabo de mim são estes trabalhos de casa!
Sofia Bragança Buchholz
Simão o fantástico

LNT
[0.225/2014]

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Barbering Books [ VIII ]

Barbering BooksDai-me música, só música, não a vida.
Leva a hora e o amor
Com os papeis de cena e as máscaras, na vida
Do último actor.

Ah viver só em cenário e ficção
Não ter deveres nem gente
Sonhar até nem se sentir a emoção
Com que se sonha e se sente.

Porque só viver é que faz mal à vida,
Só amar, querer não existe
Para quem tira a máscara e, vê na sala despida,
Que só a ficção não é triste.
Fernando Pessoa
Poesia do Eu

LNT
[0.220/2014]

sábado, 7 de junho de 2014

Barbering Books [ VII ]

Barbering BooksAquilo de que me lembro (num presente que me parece também já passado) está cheio não só de estranhezas e improbabilidades mas igualmente de vazios, de hesitações e de imprecisões, pois se calhar não me recordo de factos mas da minha recordação deles. Pode por isso suceder que o que recordo não seja o que ouvi; ou que o tenha ouvido a outra pessoa, noutro lugar, noutras circunstâncias; ou mesmo que o tenha eu próprio sonhado ou imaginado.

Ouvi e li muitas outras coisas desde a minha distante primeira viagem ao estrangeiro, onde tudo (pelo menos aquilo de que agora me lembro) começa. Talvez, quem sabe?, nem nessa viagem tenha acontecido, ou eu a tenha lido, ou ouvido contar a alguém. A matéria da memória é indefinida e insegura e nela, como na matéria da vida (a vida é provavelmente apenas memória), se confundam acontecimentos e emoções, imagens e conjecturas, cuja origem nem sempre nos é dado com clareza reconhecer e cuja finalidade a maior parte das vezes nos escapa. E, no entanto, é tudo o que temos, memória.
Manuel António Pina
Os papeis de K.

LNT
[0.218/2014]

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Barbering Books [ VI ]

Barbering BooksO povo que assaltou Lisboa na companhia do nosso primeiro rei não a devia ter olhado com olhos iguais aos daquele que um outro monarca, louco e megalómano, ali embarcou para o matadoiro de Alcácer-Quibir. E também os que arderam nas fogueiras do Santo Ofício não levaram dela, certamente, uma recordação semelhante às dos irmãos que partiam para a Índia e regressavam gloriosos.

Sim, seria preciso vê-la desbobinada, cada passo da sua via-sacra destacado, como nas capelas de um calvário, e articulado depois no drama total da Paixão. Mas, como isso é impossível, fica apenas a imagem global duma sedutora decepção feita de rendido culto à beleza e de obstinado apego à raíz. No fundo, uma trágica falta de sintonização entre a consciência do país e a capital, que o foi de direito na hora dos Descobrimentos e, desde que o sonho morreu, passou a sê-lo apenas do facto.

O Velho do Restelo da epopeia, o melhor símbolo até hoje concebido em Portugal de courelas e ovelhas, vive ainda na pele do homem que nos nossos dias desce da Estrela, do Marão e da Peneda, pernoita na Mouraria, e amanhece com um travo a carne cosmopolita e venal, a fado, a volúpia de maresia do Oriente. Esse português das berças tem da prostituição e da aventura um sentido particular e cauteloso.
Miguel Torga
Portugal

LNT
[0.215/2014]

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Barbering Books [ V ]

Barbering BooksDescobri que há algumas coisas semelhantes entre a forma como os meninos crescem actualmente e o modo com se trata a fruta. Eu explico-me.

A fruta nasce, muito bem agarradinha à árvore. Quase sempre se acoita, algures num cantinho cómodo do tronco, sob a protecção de uma folha que é forte e larga, para se proteger de todos os perigos que possam acontecer.

Dantes, por lá ficava e demorava pelo menos o tempo de duas estações, para crescer e amadurecer bem. Havia um tempo grande de esperar para poder saborear.

Agora, mal a fruta cresce um pouco, vêm os produtores e arrancam-na à força. Encaixotam os pêssegos todos em fila, uns contra os outros, e lá seguem para o armazém, que é uma câmara frigorífica.

Só que a fruta ainda está verde.

Depois as donas de casa vão às compras. Olham para os pêssegos, dizem ter um aspecto lindo. Compram. Passados dois ou três dias estão «tocados». Levaram só uns toques e estragaram-se. Quer dizer, não tinham amadurecido o suficiente para sair da árvore mãe tão cedo e aguentarem-se bem.

E assim andamos todos a reclamar que a fruta além de não ter gosto, não se aguenta. Estraga-se num instante.
Daniel Sampaio
INventem-se novos pais

LNT
[0.210/2014]

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Barbering Books [ IV ]

Barbering BooksElias procura uma pedra. Ainda ela vai no ar e já se ouvem ganidos com toda a matilha a desarvorar por esse cemitério abaixo, caim-caim, pernas para que vos quero. Elias volta-se para o Diário de Notícias.

Que está cada vez mais mula-de-enterro, o Diário de Notícias. Cada vez mais correio dos mortos. Já não é só a página das cruzes, missas do sétimo dia, Agência Magno e etecetera, é a VELADA AO SOLDADO DESCONHECIDO, Mosteiro da Batalha, é a REVOLTA NA ÍNDIA, Naufrágio de Goa, eterna saudade, é o PRESIDENTE THOMAZ, outro morto. Cemitério impresso, pura e simplesmente cemitério impresso tudo aquilo. E o Thomaz em foto a duas colunas parece um pénis decrépito fardado de almirante.
José Cardoso Pires
Balada da praia dos cães

LNT
[0.207/2014]

terça-feira, 3 de junho de 2014

Barbering Books [ III ]

Barbering BooksSe houvesse um amor abandonado à sorte dele, só Deus sabe a companhia que me faria, se eu deixasse. Quantas vezes, ao certo, cheguei eu a perder-te, para as mesmas vezes, vezes dez, enlouquecer de tanto te chamar? Tu dirás.

São cinco da tarde. Saí da tua casa. Olha a rua cheia de tempo para gastar. Pára ao pé da minha porta. Pergunta por mim. Diz o meu nome. Deixa-me ouvir.

Que coisa não se encontra aqui? Se nós quisermos? Que coisa será?

Alguém para abrir a porta. Atrás dos dias. Vestida de preto e branco. Um cheiro de carne. Um sobretudo para despir. O som de um primeiro andar. Madeira encerada. Uma carta. Um corredor com fim.

Se eu pudesse. Já.
Miguel Esteves Cardoso
O amor é fodido

LNT
[0.203/2014]

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Barbering Books [ II ]

Barbering BooksEssa mera encenação pode acontecer numa cena de teatro onde se represente um casamento. No filme, de Manoel de Oliveira, “O Princípio da Incerteza” (2002), há uma cena de casamento. Um casamento católico. Naturalmente, na cena há um actor que representa o papel de um padre, o oficiante nessa cerimónia, e outros que representam os noivos, e outros ainda a assistência. Ninguém fica mais ou menos casado por ter participado como actor nessa cena. Contudo, um dos actores que representam essa cena é um padre. Mais precisamente, quem faz de padre nessa cena é realmente um padre, na vida real, fora do filme. Essa pessoa, que aí faz de padre, poderia casar aquelas pessoas noutras circunstâncias – mas do que se representa num filme não decorrem consequências desse tipo. Tudo o que se passou no filme é diferente de um verdadeiro casamento. A diferença não está em nenhum dos movimentos, em nenhuma das palavras, nem sequer nos poderes das pessoas envolvidas. A diferença está na preparação do mundo institucional que enquadra aquela acção. Daquele conjunto de pessoas no filme não se podia dizer que contassem com os mesmos aspectos externos que contavam os que participavam no casamento de Pedro e Maria. A diferença é o contexto institucional. A diferença é institucional.
Porfírio Silva
Podemos matar um sinal de trânsito?

LNT
[0.199/2014]

domingo, 1 de junho de 2014

Barbering Books [ I ]

Barbering BooksA dureza volta-se contra nós. É o preço que se paga pela distância que interpomos entre nós e os outros. É uma factura necessária pois de outra forma teríamos de viver encostados. Custa a desenvolver, aprende-se a aperfeiçoar.

Quando nos tornamos expertos na arte, a vida corre mais solta. A dependência das pequenas coisas é obrigatória, suporta-se como a chuva miúda. Mas com vantagem couraçamos a fraqueza: é óptimo se vens, aguardo-te enquanto não chegas. Entretanto bebe-se um aperitivo.
Filipe Nunes Vicente
Amor e Ódio

LNT
[0.196/2014]