que poder de ensino o destas coisas quando em idioma:
um copo de água agreste plenamente na mesa, só em linguagem o copo me inebria
– placa de gelo em que lóbulos do cérebro? –
e exalta-me a transparência, porque fora, sob administração geral:
ciência, literatura, economia, gramática,
nada, nenhum copo, nenhuma água na mesa,
me fazem sangrar a ferida essencial, ou mover-me às cegas e às avessas até ao último reduto;
só antes, por trás, depois,
à frente, eu sinto que a membrana de vidro, reservando uma pouca
de água miraculadamente do caos dos dicionários,
me despedaça como primeira palavra,
não apenas os dedos, mas dedos e memória, devotação de vida;
a lição do nome que não tem Deus, e de que o nosso nome diminuto se aproxima;
basta aquela água delgada enquanto algures ceifam na terra, edificam;
água colhida no verbo copo ou em Deus advérbio de modo,
e há um nó interno requeimado, um nó semântico, e um calafrio trespassa a bic preta,
e em nativo escrevo a música de ouvido,
e o ar que está por cima enche todo o caderno,
e equilibram-se o copo sobre a toalha, transparência, plano de água,
e dedos e papel e script e trémula superfície da memória, tudo passado a multíplice e ardente
Herberto Helder
Faca não corta o fogo
LNT
[0.270/2014]
um copo de água agreste plenamente na mesa, só em linguagem o copo me inebria
– placa de gelo em que lóbulos do cérebro? –
e exalta-me a transparência, porque fora, sob administração geral:
ciência, literatura, economia, gramática,
nada, nenhum copo, nenhuma água na mesa,
me fazem sangrar a ferida essencial, ou mover-me às cegas e às avessas até ao último reduto;
só antes, por trás, depois,
à frente, eu sinto que a membrana de vidro, reservando uma pouca
de água miraculadamente do caos dos dicionários,
me despedaça como primeira palavra,
não apenas os dedos, mas dedos e memória, devotação de vida;
a lição do nome que não tem Deus, e de que o nosso nome diminuto se aproxima;
basta aquela água delgada enquanto algures ceifam na terra, edificam;
água colhida no verbo copo ou em Deus advérbio de modo,
e há um nó interno requeimado, um nó semântico, e um calafrio trespassa a bic preta,
e em nativo escrevo a música de ouvido,
e o ar que está por cima enche todo o caderno,
e equilibram-se o copo sobre a toalha, transparência, plano de água,
e dedos e papel e script e trémula superfície da memória, tudo passado a multíplice e ardente
Herberto Helder
Faca não corta o fogo
LNT
[0.270/2014]