sexta-feira, 16 de novembro de 2012

A nossa própria circunstância

Brevet FAPPara fazer concorrência à Joana Lopes, que de vez em quando nos brinda com peças de memória, aqui disponibilizo aos colecionadores o discurso do primeiro Juramento de Bandeira feito em Portugal depois do Vinte e Cinco de Abril.

Foi proferido no dia 1974.05.14 na Base Aérea nº1 aquando do Juramento de Bandeira dos alunos-piloto do Curso P1/74 (ao qual tive a honra de pertencer), pelo então Alferes Miliciano António Ferreira Pinto.
Camaradas recrutas,

Coube-me a honra e a responsabilidade de ser indicado para escrever e ler algumas palavras a vós destinadas, nesta cerimónia do vosso Juramento de Bandeira, coincidente com o Dia da Unidade; e, aquilo que poderia, a priori, ser como tácita aceitação de uma disposição superior, não o foi, na realidade, pela simples razão de que este ano, houve um 25 de Abril.

Já é do conhecimento geral os acontecimentos memoráveis desse dia, - de cuja extensão não temos ainda a noção exacta – em que um punhado de capitães desceu à rua, deu as mãos ao Povo e resolveu pôr cobro ao governo fascista, colonialista de Salazar e Caetano que, com mais ou menos repressões, com mais ou menos sorrisos demagógicos, com mais ou menos reformas revisionistas ia aniquilando o País, ia tornando Portugal numa Nação indesejável à luz do mundo, fazendo dele um dos recantos mais miseráveis do globo terrestre, para gáudio e enriquecimento de uma minoria, postada na exploração do próprio povo.

Terminou o fascismo e, graças ao Movimento das Forças Armadas / Povo, de imediato se lançaram as primeiras pedras na reconstrução de uma nação verdadeiramente livre, com respeito e defesa das liberdades individuais, sustentáculo inequívoco de um jogo em que as regras se resumem a FÓRMULAS DEMOCRÁTICAS DE EXISTÊNCIA.

Eis porque se tornou possível eu escrever, e mais ler, aqui, numa Unidade Militar de Portugal, qualquer coisa como isto que vos escrevi e estou lendo e que, ainda há bem pouco, me faria quase hesitar em pensá-lo. Ainda me lembro, sem saudade como é evidente, do discurso que há três meses o Alf. Magalhães proferiu, aqui, neste mesmo local, e das dificuldades por ele tidas, em escrever algo que não ferisse as “susceptibilidades governamentais”, nem colidisse com o seu esquema ideológico.

Por isso, e pelo facto de esta ser (creio eu) a primeira cerimónia de Juramento de Bandeira deste país de Abril, deste Portugal resgatado, desta Nação ressuscitada, eu reafirmo da honra e igualmente da responsabilidade maior que a liberdade de expressão me aufere, na designação desta missão, cujas linhas vos dedico.

Ao fazê-lo, o meu pensamento vai primeiramente para todos aqueles que sofreram na carne, a irracionalidade do governo de Salazar e Caetano, para os presos políticos que no Tarrafal, em Caxias, em Peniche foram expostos aos maiores vexames e torturas, jamais possíveis e passíveis de serem idealizados no mundo actual. E quantos sucumbiram às mãos dos algozes...

Vai, do mesmo modo, para o Povo que durante meio século foi sistematicamente explorado e espoliado dos seus haveres e da justiça; desse povo enlutado que tudo deu sem nada receber.

Não esqueço, ainda, os corajosos filhos da Pátria que se recusaram a alimentar, a colaborar com o fascismo, e no estrangeiro buscaram melhor vida, já que neste canto só encontravam o lento caminhar para uma morte inútil, a fome, a miséria, a injustiça, a corrupção, em contraste flagrante com as benesses concedidas a meia dúzia de monopólios.

Um desses exilados, o extraordinário Manuel Alegre, a personificação incontestada da Voz da Liberdade, gritava lancinante lá de longe:

Não mais Alcácer Quibir
É preciso voltar a ter uma raiz
Um chão para lavrar
Um chão para florir
É preciso um País
Não mais navios a partir
Para o país da ausência.
É Preciso voltar ao ponto de partida
É preciso ficar e descobrir
A pátria onde foi traída
Não só a independência
Mas a vida.

O Tempo é de esperança, e mais de certeza. Já temos um País, com chão para lavrar, para florir; é preciso voltar ao ponto de partida!

Temos homens capazes de o cultivar, de o construir, de o engrandecer, de o amar... é preciso inventar o amor nesta terra que já foi de ódio.

E ao ver-vos diante de mim, de armas na mão, eu vejo, como dizia o poeta, o povo em armas. É preciso não vos esquecerdes que a vossa responsabilidade está em assegurar a paz, defender as liberdades individuais tal como o afirmam os princípios do movimento das Forças Armadas de 25 de Abril.

Da união do Povo com as Forças Armadas dependerá o bem-estar social, a alegria de viver, a paz de Portugal.

No Povo sempre esteve e estará a razão de ser de um País.

Com uma farda vestida, um fato de macaco, uma batina, de qualquer modo que vos apresentardes, cabe-vos a responsabilidade e o dever de defesa total dos interesses da Nação.

Pela primeira vez neste País, o Juramento de Bandeira toma o significado e a projecção de uma defesa popular e verdadeiramente nacional.

Vós sois "os homens capazes duma flor, onde as flores não nascem", como dizia também o Manuel Alegre.

É forçoso que construamos, dentro da nossa especificidade, um País novo, o País de Abril, onde os homens estejam – como referia Paul Valéry – "prontos a enfrentar coisas que nunca existiram".

Sede dignos, igualmente das fardas que em 25 de Abril, de mangas arregaçadas, empunhando a raiva e o desejo de gritar bem alto BASTA, puseram fim ao governo cruel de Caetano, continuador do despotismo santacombadense.

Sede dignos desses homens e ajudai o País a aprender a soletrar palavras como LIBERDADE e AMOR.

Pilotos recrutas do curso P1/74 que os vossos aviões, e os conhecimentos aqui obtidos vos sirvam para estreitar as distâncias, na tal "Viagem do Homem para o Homem".
A todos Boa Viajem!
LNT
[0.583/2012]

2 comentários:

Maria disse...

Deve ter sido lindo e comovente, com poema do Manuel Alegre e tudo.
Obrigada pela maravilhosa partilha.
Como fomos, como estamos.
Havia sonhos, ilusões, esperança, poemas e canções. Roubaram-nos quase tudo. Restam os poemas, as canções e uma pontinha de Esperança.
Maria

Peter disse...

Lindo!