segunda-feira, 2 de junho de 2014

O barbeiro [ II ]

O BarbeiroEstava o barbeiro embrenhado nestes pensamentos do: "lá andam estes gajos a tratar da vidinha em vez de tratarem da nossa vida que foi para isso que os elegemos" quando entrou o Sô Tor.

Sô Tor era um personagem do bairro a quem ninguém conhecia o nome. O Sr. Luís sempre tinha achado estranho aquela designação porque o homem não era médico e, se fosse assim chamado por ser licenciado, ainda mais estranho lhe parecia uma vez que toda a canalhada do bairro também o era (a maior parte até tinha tirado um mestrado para depois aprender um ofício como era o caso do Zé taxista que andava agora com o turno da noite do pai por não ter singrado no seu mister) e todos os tratavam pelo primeiro nome.

Sô Tor era um homem bem apessoado que ninguém sabia o que fazia a não ser que passava a vida a viajar para os Camões, Camarões, Caimões ou lá o que era, e que se gabava de não pagar impostos embora nunca perdesse uma oportunidade para chamar de chulos todos os outros moradores da zona que eram professores, médicos, informáticos, advogados e engenheiros desde que trabalhassem no Estado.

- Bom dia, Sô Tor, faça a fineza de se sentar e dizer-me ao que vem hoje.

- É para um caldinho, Sr. Luís, um caldinho bem dado e vá preparando a facturinha com o número de contribuinte para ver se eu ganho um Audi e fico como aquele senhor que andava de Vespa até que sentou o rabinho no poder para se encher com o que descontamos.

- Mas o Sô Tor diz que não paga impostos!

- E não pago! Mais faltava andar a encher os bolsos desta gentalha.
LNT
[0.200/2014]
Imagem: http://www.gutenberg.org/

Barbering Books [ II ]

Barbering BooksEssa mera encenação pode acontecer numa cena de teatro onde se represente um casamento. No filme, de Manoel de Oliveira, “O Princípio da Incerteza” (2002), há uma cena de casamento. Um casamento católico. Naturalmente, na cena há um actor que representa o papel de um padre, o oficiante nessa cerimónia, e outros que representam os noivos, e outros ainda a assistência. Ninguém fica mais ou menos casado por ter participado como actor nessa cena. Contudo, um dos actores que representam essa cena é um padre. Mais precisamente, quem faz de padre nessa cena é realmente um padre, na vida real, fora do filme. Essa pessoa, que aí faz de padre, poderia casar aquelas pessoas noutras circunstâncias – mas do que se representa num filme não decorrem consequências desse tipo. Tudo o que se passou no filme é diferente de um verdadeiro casamento. A diferença não está em nenhum dos movimentos, em nenhuma das palavras, nem sequer nos poderes das pessoas envolvidas. A diferença está na preparação do mundo institucional que enquadra aquela acção. Daquele conjunto de pessoas no filme não se podia dizer que contassem com os mesmos aspectos externos que contavam os que participavam no casamento de Pedro e Maria. A diferença é o contexto institucional. A diferença é institucional.
Porfírio Silva
Podemos matar um sinal de trânsito?

LNT
[0.199/2014]

Já fui feliz aqui [ MCDXIV ]

Caracóis
Caracóis - Por aí - Portugal
LNT
[0.198/2014]

domingo, 1 de junho de 2014

O barbeiro [ I ]

O BarbeiroCom a casa vazia, o barbeiro sentado na cadeira dos clientes revia o tempo em que não tinha mãos a medir. Os dois empregados foram embora há muito e as manicuras tiveram de seguir outro caminho, umas por aí e outras nas Franças e Alemanhas a fazer pela vida.

Bom dia, Sr. Luís, iam mandando com um aceno à porta, os velhotes de barba crescida que deixaram de poder aparar.

Olá, Sr. Luís, apregoavam os desgrenhados que deixaram de cortar a trunfa desde que foram obrigados a inscrever-se no centro de emprego.

A esperança do barbeiro, aflito com a escassez de clientela e com o aperto do IVA que não podia repercutir nos preços dos poucos que ainda entravam, residia na notícia que lia no jornal. - Os gajos foram derrotados, pode ser que isto mude. É só mais um jeitinho, um esforço, uma pressão.

Animado, liga a televisão para ouvir a retractação dos derrotados e, sem perceber nada, vê desfilar um rosário de caras novas dos velhos de sempre a recitar coisas que nada lhe dizem e pensa para os seus botões:

- Lá estão eles de novo a tratar da vidinha. Estou lixado! Cada vez mais lixado!
LNT
[0.197/2014]
Imagem: http://www.gutenberg.org/

Barbering Books [ I ]

Barbering BooksA dureza volta-se contra nós. É o preço que se paga pela distância que interpomos entre nós e os outros. É uma factura necessária pois de outra forma teríamos de viver encostados. Custa a desenvolver, aprende-se a aperfeiçoar.

Quando nos tornamos expertos na arte, a vida corre mais solta. A dependência das pequenas coisas é obrigatória, suporta-se como a chuva miúda. Mas com vantagem couraçamos a fraqueza: é óptimo se vens, aguardo-te enquanto não chegas. Entretanto bebe-se um aperitivo.
Filipe Nunes Vicente
Amor e Ódio

LNT
[0.196/2014]

Já fui feliz aqui [ MCDXIII ]

Berbigões
Berbigões - Por aí - Portugal
LNT
[0.195/2014]

sábado, 31 de maio de 2014

O que faz falta

VotarTambém eu que não apoiei a proposta de Assis, na altura em que foi necessário pegar nos destroços do PS esmagado pela maioria absoluta da coligação no poder, entendo que, perante os sinais dados pelos cidadãos que se abstiveram, votaram branco ou anularam os seus votos nas Europeias, é necessário equacionar formas de melhorar a qualidade da democracia representativa em Portugal com soluções mais participativas.

Vai ser um trabalho hercúleo porque exigirá muita imaginação e esforço.

É este o essencial que os cidadãos esperam porque já se aperceberam que a seu alheamento da política não está dependente de aparições salvíficas e milagreiras.

Como é evidente, sempre que um incidente é criado, há que encontrar uma solução urgente que evite a sua transformação em problema. No caso do Partido Socialista, o incidente milagreiro está criado e há que resolvê-lo com celeridade para o mitigar e voltar às questões sérias relacionadas com o estado da democracia e, principalmente, com o bem-estar dos portugueses.

Espero que, até ao fim da Comissão Nacional de hoje, seja também aberto o caminho para encerrar celeremente a questão que está a inviabilizar a concentração da atenção política naquilo que diz respeito aos cidadãos.
LNT
[0.194/2014]

Já fui feliz aqui [ MCDXII ]

Rissol
Rissol - Por aí - Portugal
LNT
[0.193/2014]

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Ontem deu-me para a milícia, hoje viro-me para o divino

Pé FranciscanoPortugal sempre foi dado ao divino.

Tirando o fundador, não o Pai Fundador, porque desse pouco comento, o Afonso Henriques, o que cascou na Mãe e por isso era pouco dado a morais e religiões, todos os que por aí andaram (sejamos justos e façamos também a excepção aos que se refugiaram nas Choças da Carbonária) acreditaram e fizeram acreditar que aquilo que não se explicava era conseguido por inspiração divina.

Umas vezes fizeram a aplicação prática dessa inspiração pelo Santo Ofício, outras pelas revelações do Sol rodopiante que proclamavam a conversão da Rússia (comunista).

Faltava-nos agora a aparição salvadora, redentora e milagreira do Santo a quem não bastou a consagração da Capital do Império.

Oremos!
LNT
[0.192/2014]

Oratórias

MagritteMais uma oratória, desta vez a de António Vieira e do seu sermão aos peixes
(os Antónios multiplicam-se, Santo Deus):

Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo.
Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar.
Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos.
Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego?
Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer.
Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra.
LNT
[0.191/2014]

Dá-me o teu bracinho, vem bailar comigo

Santo AntónioCá vai a marcha, mais o meu par
Se eu não o trouxesse, quem o havia de aturar?
Não digas sim, não me digas não
Negócios de amor são sempre o que são
Já não há praça dos bailaricos
Tronos de luxo num altar de manjericos
Mas sem a praça que foi da Figueira
A gente cá vai quer queira ou não queira

Ó noite de Santo António
Ó Lisboa de encantar
De alcachofras a florir
De foguetes a estoirar
Enquanto os bairros cantarem
Enquanto houver arraiais
Enquanto houver Santo António
Lisboa não morre mais

Lisboa é sempre namoradeira
Tantos derriços que já até fazem fileira
Não digas sim, não me digas não
Amar é destino, cantar é condão
Uma cantiga, uma aguarela
Um cravo aberto debruçado da janela
Lisboa linda do meu bairro antigo
Dá-me o teu bracinho
Vem bailar comigo

Reportório de Amália Rodrigues
Música de Raul Ferrão e Norberto Araújo
Cerâmica de Teresa Rezende
Ouvir aqui: www.youtube.com/watch?v=XK3kXrEZcow
LNT
[0.190/2014]

Já fui feliz aqui [ MCDXI ]

Pastel de Bacalhau
Spencer Tunick - Melbourne
LNT
[0.189/2014]

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Contra os canhões, marchar, marchar

MagritteDetesto personalismo e abomino o seguidismo.

Prefiro guiar-me por princípios de lealdade e pela honra. Coisas fora de moda, sei, mas coisas minhas. É inaceitável que alguém venha dizer: - Estou aqui - sem dizer ao que vem e para o que ali está.

Que ele estava ali já se sabia. Que ele já se fez invisível na altura em que foi necessário suceder no PS quando o Partido tinha acabado de ser esmagado por uma maioria absoluta da direita, que ele já avançou para recuar quando ainda havia dúvidas sobre se a direita já estava derrotada, fez, mas nunca deixou de se ver que ele ali estava.

Tinha agora obrigação de se apresentar às tropas dizendo quais são as armas de que dispõe e qual a estratégia a usar no combate a que se dispôs.

Não o fez. É pena e mais pena é constatar que está a formar um exército regular protegido por um pelotão de snippers refractários, desertores e mercenários.

Onde andavam essas tropas especiais quando foi necessário eleger deputados europeus para fortalecer, com uma equipa abrangente e diversificada de alto nível, o grupo do Partido Europeu Socialista e combater a direita que nos comanda a partir de Bruxelas?

Alguns, sabemos. Desfraldavam bandeiras ditas Livres que só serviram para enfraquecer o PES e outros entretiveram-se em faits-divers que ajudaram a deitar por Terra as pretensões de termos na Europa um grupo parlamentar capaz de defender as bandeiras sociais que os socialistas empunham em Portugal.
LNT
[0.188/2014]

Já fui feliz aqui [ MCDX ]

Pastel de Bacalhau
Pastel de bacalhau - Por aí - Portugal
LNT
[0.187/2014]

quarta-feira, 28 de maio de 2014

O que tem de ser feito tem muita força

Partida/chegadaO triste espectáculo montado na sequência do sound byte lançado por Portas no seu discurso de derrota enche paragonas e distrai-nos do que os portugueses registaram no passado Domingo.

Em duas linhas, os eleitores que ainda se deram ao trabalho de dizer que acreditam neste regime mas que os Partidos do poder vão ter de fazer melhor se quiserem que neles continuem a acreditar, explicaram claro que estão fartos da coligação de direita embora ainda não tenham esquecido as razões que anteriormente os levaram a dar uma maioria absoluta ao poder instalado.

Portas, que é o sábio das sonoridades, lançou na noite em que sofreu uma das maiores derrotas da sua vida, uma farpa maquiavélica que pretendia desvalorizar a penalização que sofreu escondendo-a naquilo que designou por uma “perda menor” dado que o maior Partido da oposição não tinha capitalizado os votos que lhe escaparam.

Foi o suficiente para que políticos experientes do Partido Socialista se deixassem enrolar nas palavras de Portas e passassem a fazer eco do sound byte lançado. Foi suficiente para que, com base nisto, os vitoriosos vestissem os fatos de combate para fazer o jogo de “vitória menor” que Portas lançou.

Pouco interessa. O mal está feito.

O milhão e tal de eleitores do Partido Socialista olham para esta desfeita com incredibilidade.

Pensarão certamente que andaram a brincar com eles e com a honra das bandeiras que, nos dias anteriores à votação, desfraldaram junto de amigos e vizinhos no jogo democrático do convencimento de alternativas às malfeitorias feitas nos três últimos anos.

Mas agora, com o mal feito, a legítima direcção do Partido Socialista tem de reagir à contrariedade e reafirmar a seriedade com que se apresentou nos dois últimos Congressos Nacionais e o nosso Secretário-geral deverá confirmar, mais uma vez, que o seu único interesse é a defesa da melhoria da condição de vida dos portugueses.

Para o fazer tem de clarificar urgentemente a situação interna no Partido Socialista e evitar que o empastelamento criado pelo mal feito mine o que resta da credibilidade que os Partidos políticos ainda detêm em Portugal. Tem de ser rápido, tem de ser seguro, tem de ser clarificador.

Temos de seguir em frente. Há gente demais a viver mal demais para que se arrastem estes jogos de poder.
LNT
[0.186/2014]